Em lojas, no trabalho, na escola e nas redes sociais, a injúria racial, por vezes disfarçada de brincadeira, acontece diariamente. No Dia Nacional da Consciência Negra, vítimas desse tipo de crime contam histórias de sofrimento e como lidam com elas.
JA Juliana Andrade MM Mariana Machado

Luísa Abreu, estudante de economia da Universidade de Brasília, e Jhonathan Hebert, aluno de administração: redes sociais e eventos culturais como forma de enfrentar o preconceito(foto: Carlos Vieira/CB/D.A Press)
Luísa Abreu, estudante de economia da Universidade de Brasília, e Jhonathan Hebert, aluno de administração: redes sociais e eventos culturais como forma de enfrentar o preconceito
(foto: Carlos Vieira/CB/D.A Press)
“Só quem é negro e que passou por isso sabe o quanto dói.” Assim, a vendedora Fabíula Lopes Silva, 36 anos, resume o sentimento de quem sofreu preconceito racial, em 2016. Desde então, ela lembra, como se fosse nesta terça-feira (19/11), das palavras ditas pela ex-mulher do companheiro. “Ela não aceitava o término, ficou contrariada e passou a me agredir por mensagens (por aplicativo)”, conta. A conversa logo extrapolou os limites. “Ela me chamou de macaca e disse que eu podia ficar com ele, porque, quando a gente tivesse filhos, nasceriam vários macaquinhos. Ela ainda falou que o meu cabelo era duro e que eu era dentuça”, lamenta. Fabíula entrou com um processo na Justiça contra a autora das agressões.

Situações como essa se repetem frequentemente, mesmo após as conquistas lembradas no Dia Nacional da Consciência Negra, celebrado todo 20 de novembro. Neste ano, o Distrito Federal registrou 360 casos de injúria racial e um de racismo até outubro, segundo a Secretaria de Segurança Pública — no mesmo período de 2018, houve 382 ocorrências. Um estudo do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) mostrou que a maioria das ofensas ocorre no trabalho (34,7%), em via pública (18%) e na casa da vítima (17,3%). São piadas, olhares, apelidos e situações constrangedoras que podem render ao agressor até 5 anos de prisão, de acordo com a Lei nº 7.716/1989. As ofensas mais ouvidas pelos negros são: “preto safado”, “macaco” e “negro incompetente”, segundo o levantamento do MPDFT.

No DF, 68% da população se declara preta ou parda, como revela a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (Pdad) de 2018, da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan). O percentual é maior na Fercal (82%), Estrutural (77%) e no Varjão (76%). Quando se restringe os números para a população negra, há algumas mudanças: apenas 10% dos entrevistados no DF se dizem pretos. As três regiões administrativas com maiores percentuais são: Varjão (17%), Estrutural (15%) e Paranoá (14%).

A professora do Departamento de Filosofia da Universidade Católica de Brasília, Vanildes Gonçalves dos Santos explica que a distribuição demográfica tem raízes no preconceito. “Os moradores dos lugares mais precarizados na sociedade são negros. Isso não é coincidência, mas fruto de um país que viveu mais de 300 anos de escravidão”, ressalta. “O discurso e as práticas do Estado brasileiro e da população perpetuam esse racismo que a gente viveu no colonialismo. Quantos médicos negros existem? E professores de ensino superior? Não é falta de capacidade, mas resultado de uma estrutura histórica.”
Denúncias
A promotora de eventos Nayce Samara Silva Santos, 26, sofreu injúria racial em um ônibus, enquanto voltava de um evento. Em um primeiro momento, não procurou a delegacia, mas relatou o crime nas redes sociais.“Eu estava em pé e tinha duas senhoras sentadas na minha frente. Eu usava um turbante, e elas falavam que eu era bonita, mas que estava com lenço de macumbeira para esconder o meu cabelo ruim”, diz.

Na hora, Nayce ficou sem reação. “Eu não tenho dó de gente racista, mas tem hora que a gente abaixa a cabeça e vai embora. Essa não é a reação que eu gostaria de ter, mas nem todos os dias estamos preparados para enfrentar”, reconhece. Depois, ela gravou um vídeo detalhando a situação, publicou no Facebook e teve mais de 1 milhão de visualizações. “A maioria das pessoas ficaram indignadas. Quando a gente expõe, o pessoal acha um absurdo, que é algo raro, mas quem é negro sabe que a gente passa por isso o tempo todo”, destaca.

Na rede social, porém, a promotora de eventos também recebeu mais insultos. Diante disso, Nayce prestou queixa na delegacia. “Todo mundo acha que é mimimi. As pessoas não sabem o que a gente sente, não sabem pelo que passamos e ainda querem falar a respeito”, reclama Nayce.

Para a titular da Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou por Orientação Sexual ou Contra a Pessoa Idosa ou com Deficiência (Decrin), Ângela Maria do Santos, denunciar é fundamental para a ampliação das políticas públicas. “Isso não pode se tornar banal. Alguns relatos que chegam nas ocorrências são no sentido de ‘eu xingo mesmo, você é isso e não vai dar em nada’. As pessoas têm a sensação de que elas são melhores do que as outras e nada vai acontecer com elas”, alerta. Os registros podem ser feitos diretamente nas delegacias ou pelo 197, além do Disque 100. Para denunciar, o ideal é reunir documentos, como gravações e prints, ou testemunhas.
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Em 2018, o Ministério Público do DF e Territórios ajuizou 95 casos de injúria racial e racismo, um aumento de 73% em relação a 2017. Segundo o órgão, de 2016 a 2018, 95% dos processos tiveram como resultado a responsabilização do réu.

Entenda a diferença

Racismo
Atinge uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando
a integridade de uma raça. Pena: até 5 anos de reclusão

Injúria racial
Ofensa a honra de alguém mediante raça, cor, etnia,
religião ou origem. Pena: de 1 a 5 anos de reclusão