Programa "Mais Médicos".

Por Natália Cancian

Antes considerado um dos principais programas do Ministério da Saúde, o “Mais Médicos” registra hoje locais com “apagão” de profissionais e enxugamento de parte de suas vagas, processo que tende a se agravar em cidades de grande porte e em outros municípios no Sudeste, Sul e Centro-Oeste.

A situação ocorre devido a uma decisão do governo de prorrogar e renovar vagas apenas em cidades classificadas como de perfis 4 a 8, de maior vulnerabilidade, até que haja a substituição do Mais Médicos por um novo programa.

Cidades de perfis 1 a 3, como capitais, municípios em regiões metropolitanas e outras com mais de 50 mil habitantes, têm ficado de fora de editais e de vagas de reposição.

Dados obtidos pela Folha por meio da Lei de Acesso à Informação apontam que, de 18.240 vagas autorizadas no Mais Médicos, 7.859 estão em cidades com esses perfis 1 a 3.

Dessas, 1.855 estão desocupadas e já ficaram de fora de dois editais lançados neste ano. Outras 6.004 ainda têm profissionais âboa parte delas, porém, deve ter contratos encerrados até o próximo ano.

“As cidades de perfis 1 a 3 não serão mais prorrogadas”, confirmou à Folha a secretária de gestão e trabalho em saúde, Mayra Pinheiro, responsável pelo programa.

Segundo ela, a decisão por retirar essas cidades do Mais Médicos foi chancelada em fevereiro. “Essas cidades já saíram”, afirma Pinheiro, segundo quem a pasta deve esperar o fim dos contratos, que duram três anos, para remanejar parte das vagas para o novo programa, em elaboração.

Até que haja a confirmação sobre a participação ou não desses locais na nova medida, o enxugamento progressivo de vagas nessas cidades preocupa prefeitos e gestores.

Na última semana, o Ministério da Saúde lançou edital para preenchercerca de 2.000 vagas oriundas de desistências de profissionais e de contratos encerrados, mas com postos ainda vazios. A renovação, no entanto, ocorreu somente em cidades de perfis 4 a 8.

Secretários de Saúde têm procurado o ministério para tentar reverter a medida. “Mas, em reunião, ficou evidente que não teria mais editais para as cidades. É o mesmo que deixar automaticamente quase todo o estado de São Paulo sem o Mais Médicos”, afirma o presidente do Cosems-SP (conselho de secretários municipais de Saúde de SP), José Eduardo Fogolin.

Das cidades paulistas, 77% são classificadas como de perfis 1 a 3. “Muitos dizem que não teríamos dificuldade de achar médico. Pelo contrário. Em São Paulo, a competição entre cidades vizinhas por médicos é maior ainda.”

Para Denilson Magalhães, da Confederação Nacional dos Municípios, o novo critério desconsidera a realidade das cidades. “Mesmo em capitais, há várias áreas em extrema pobreza”, afirma ele, que lembra que vários desses postos antes eram ocupados por cubanos e têm sido alvo de desistências nos últimos meses.

O resultado desse embate é uma ausência de reposição de vagas, a qual já deixa impactos na rede de saúde. Em Salvador, capital que ficou de fora do último edital, de 146 vagas autorizadas no programa, 53 estão sem médicos.

É o caso a unidade Luiz Braga, no Subúrbio Ferroviário de Salvador. Com capacidade de atender 650 pessoas por dia, tinha quatro médicos do Mais Médicos. Há pelo menos um mês está sem nenhum.

Sem os profissionais, moradores como a aposentada Maria do Carmo Lopes não conseguem atendimento. Com 62 anos, ela tem hipertensão e problemas cardíacos que demandam acompanhamento, mas não encontrou médico nas últimas três vezes que foi ao posto de saúde.

A estudante Taine Mascarenhas, 19, vive situação semelhante. Apreensiva com um sangramento recorrente no nariz de seu filho Thaylon, 2, ela esteve na unidade de saúde duas vezes na última semana, mas não conseguiu ser atendida. “Só tem as enfermeiras. Elas ajudam, orientam, mas não é a mesma coisa.”

O desfalque se repete em outros bairros e gera pressão nas unidades de pronto atendimento e hospitais.

A secretaria de Saúde de Salvador, Adriana Miranda, lamenta a não renovação das vagas e destaca a importância dos profissionais nas áreas de maior vulnerabilidade.

A preocupação é compartilhada por secretários de Saúde de outras capitais. Para o prefeito de Fortaleza, o médico Roberto Cláudio, os impactos do Mais Médicos vão além da presença de profissionais.

“Antes do Mais Médicos, tínhamos dificuldade em garantir a presença de médicos em algumas áreas.

Tanto que, com o programa, registramos melhorias nos indicadores de acesso ao pré-natal”, afirma ele, que hoje convive com 79 vagas desocupadas.

Nas cidades menores que fazem parte da lista, prefeituras apontam outras dificuldades.

Pelas regras do programa, cada médico recebe uma bolsa de R$ 11.800, além de ajuda de custo, valor que é maior do que algumas prefeituras podem custear devido ao teto dos servidores limitado ao salário dos prefeitos.

“Muitas [administrações] abrem concurso, mas não encontram médico”, diz Fogolin.

O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, defende a decisão do governo.

“Não tem cabimento precisar do governo federal para contratar médico para a cidade de São Paulo, por exemplo. É uma metrópole. Ah, é difícil colocar médico numa área crítica? Se é difícil para São Paulo, é difícil para o governo federal também.”

Segundo ele, a ideia é que o Mais Médicos tenha novos editais ainda com base nesses critérios até que haja substituição completa do programa por um novo modelo de provimento de médicos no país.

Atualmente, o governo estuda estratégia com foco em cidades mais carentes, sobretudo as do chamado “Brasil profundo”. Para as demais, haveria a possibilidade de usar o processo seletivo feito pelo ministério âdesde que se responsabilizem pelo pagamento dos profissionais, afirma.

Mandetta não descarta, porém, que algumas cidades maiores, especialmente aquelas com áreas rurais extensas, possam ter distritos incluídos no novo modelo. Já a transição seria gradual. Ainda segundo o ministro, a pasta tem lançado programas para grandes cidades, caso do Saúde na Hora, que prevê maior repasse para unidades atenderem à noite.

Magalhães, da CNM, diz que a medida não é suficiente. “Quando estendo o horário de funcionamento, por mais que o ministério repasse um valor, aumento a minha despesa. Isso não ameniza a retirada do Mais Médicos”, afirma.

O professor da Faculdade de Medicina da USP Mário Scheffer defende que as cidades que podem perder vagas invistam em outros mecanismos para fixação de médicos. “As periferias sempre terão dificuldade em atrair médicos. Cabe aos empregadores criar mecanismos de atração, como planos de carreira”, sugere.

Para ele, algumas cidades podem ter condições de financiar suas vagas. “Mas é preciso avaliar cada caso. Certamente deve ter municípios que têm vulnerabilidade maior.”

Coordenador do Mais Médicos nos primeiros anos do programa, Felipe Proenço diz que a inclusão de cidades de perfis 1 a 3 seguiu estudos sobre a distribuição de médicos.

“As capitais entraram por terem grandes áreas de periferia. Já os outros eram municípios que demonstravam necessidade de profissionais e que tiveram que comprovar terem áreas com vulnerabilidade”, afirma ele, que prevê desassistência e flexibilização de atendimentos.

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